29 de fevereiro de 2020

Tarrafal - memória e exempo

Intervenção de Vítor Dias
no acto público promovido pela URAP
junto ao Mausoléu aos Mortos do Tarrafal
29.2.3020


Aqui estamos, mais uma vez e como todos os anos por iniciativa da URAP, para prestar a nossa sentida homenagem aos combatentes da liberdade que morreram no Tarrafal sem nunca esquecer também todos aqueles homens nossos irmãos que estiveram longos anos aprisionados naquele inferno e a ele conseguiram sobreviver para voltarem à luta de cara levantada.
É imperioso começar por dizer que aqui estamos a cumprir uma tradição  mas é necessário acrescentar que se trata de uma boa tradição porque é uma tradição que é filha de um dever de memória, de um dever de consciência, de um dever de gratidão por todos aqueles que, assassinados no Tarrafal ou lá tendo sofrido o que hoje custa a imaginar, inscreveram a letras de sangue e sacrifício na nossa história colectiva os valores perenes  da coerência, da coragem e da firmeza de convicções democráticas.

E cremos ser adequado sublinhar nesta ocasião o profundo significado de há dis ter sido anunciado em Cabo Verde  o projecto de transformação do Tarrafal num verdadeiro museu da Resistência.
Sobretudo a pensar nas novas gerações, justifica-se lembrar sempre que se não bastassem os assassinatos de antifascistas cometidos em Portugal pelas diversas forças repressivas do fascismo, se não bastassem as bárbaras torturas infligidas a  centenas e centenas de homens e mulheres cujo único crime era o de lutarem por tudo aquilo que hoje é quase tão natural como o ar que respiramos, se não bastassem os milhares de anos passados pelos democratas nas cadeias políticas do regime,então aí estaria o campo de concentração do Tarrafal – que foi concebido, criado e dirigido para ser um campo de extermínio físico e humilhação – para mostrar que, ao contrário do que alguns de vez em quando proclamam, a ditadura fascista não foi nem branda nem suave mas antes, à sua escala, cruel, hedionda, desumana e bárbara.
Num momento de recolhimento, importa recordar que o Tarrafal, onde a partir do inicio da década 60 também sofreram os combatentes de países colonizados cuja memória também honramos, significou para mais de uma centena de antifascistas portugueses não um qualquer degredo relativamente confortável mas uma imensa distância em paragens inóspitas de familiares e amigos, a péssima alimentação, as mortíferas doenças tropicais e a flagrante e absoluta falta de assistência médica (ficou para a história amarga desse tempo a declaração de que o médico só estava lá para passar certidões de óbito), os brutais castigos como o da “frigideira”, a terrível incerteza da data de libertação e uma indescritível vivência da monótona mas angustiante passagem dos dias, das semanas, dos meses e dos anos.
Os 32 assassinados no Tarrafal não puderam conhecer o vendaval  poderoso,    alegre, feliz e entusiasmante da conquista da liberdade em 25 de Abril de 1974 mas, no nosso imaginário e no nosso coração,eles figuram ao lado dos vivos como vencedores nesse longo, áspero e sacrificado combate contra a ditadura fascista.
E bem podemos dizer que,  nestes tempos carregados de  perigos de avanço de ideias reaccionárias, racistas, xenófobas e populistas que, em muitos casos, são afinal as roupagens actuais e circunstanciais de um fascismo antigo e de fascistas que só os impactos poderosos da revolução de Abril obrigaram durante tanto tempo ao disfarce e à discrição,  importa ainda mais honraro legado histórico  de todos os resistentes que sofreram no Tarrafal.

E esse legado chama-se nenhuma tolerância com reaccionários e neo-fascistas, chama-se sólidos compromissos de vida com  os ideais da liberdade, da democracia, da paz e do progresso social, chama-se visão humanista da sociedade, do país e do mundo, chama-se capacidade de olhar as batalhas do presente com confiança e de mirar o futuro com uma esperança ancorada na luta e acção transformadora dos homens.
Até outro ano, mártires da nossa liberdade, podeis estar certos de que o vosso exemplo viverá sempre nos nossos gritos de revolta, nas nossas atitudes de insubmissão, no nosso caminho de construção e de conquista, na nossa resposta às interpelações do presente e aos desafios do futuro.








27 de outubro de 2019

Algumas palavras sobre o livro «Forte de Peniche, memória, resistência e luta»

Intervenção de Vítor Dias
no Encontro-Convívio realizado no
Forte de Peniche em 26.10.2019


Estimados amigos,
companheiros e camaradas :

Permitam-me que traga a este nosso encontro tão marcado pela fraternidade e pela nossa colectiva vinculação aos valores da resistência antifascista e da liberdade algumas breves palavras sobre a 5ª edição do livro em boa hora organizado e editado pela URAP e significativamente intitulado «Forte de Peniche, memória, resistência e luta».

Com esta 5ª edição, este livro atingirá os 11.000 exemplares, o que, no panorama editorial português, constitui um notável êxito, bem demonstrativo do interesse que despertou e que tem sido também patente nas dezenas de sessões da sua apresentação que a URAP tem organizado por todo o país envolvendo muitas centenas de democratas.

Mas o que definitivamente marca este livro, para além do valor intrínseco do seu conteúdo, é sem dúvida o ter sido um valioso instrumento da luta que, por imperativo de consciência, travámos contra o projecto de transformação do Forte de Peniche num hotel de luxo e pela edificação, agora em vias de plena concretização, neste mesmo Forte de um Museu Nacional da Resistência e da Liberdade.

Com efeito, parte importante deste livro é ela própria a história densamente documentada da movimentação democrática em torno de objectivo que atrás referi, desde a petição lançada em Outubro de 2016 e subscrita por 9635 cidadãos e entregue na AR em 26 de Janeiro de 2017 até à jornada popular da inauguração da 1ª fase do Museu em 27 de Abril de 2019, passando pelo dois anteriores encontros-convívios em 29 de Outubro de 2016 e de 2 de Outubro de 2018 e ainda pela jornada de inauguração do monumento aos presos políticos em 9 de Setembro de 2017.

Olhando para trás, talvez possamos dizer, com modéstia mas também uma ponta de orgulho, que esse foi o caminho de pedras que juntos percorremos mas também que por esse caminho de pedras construímos todos uma grande vitória na preservação dos valores da memória histórica e na pujante afirmação do valor supremo da liberdade e que valeu a pena a persistência, a tenacidade, a firmeza de convicções e a unidade dos que souberam reclamar e lutar.

Tempo agora para vos dizer que um importante capítulo deste nosso livro é aquele onde, ao longo de 25 páginas se relatam as condições e o regime prisionais vigentes no Forte de Peniche ao longo de diversas épocas. E bem se pode dizer que esse texto tem o superior valor de ser o único existente que, embora de forma necessariamente resumida, permite uma visão de conjunto de como era a vida encarcerada dos 2510 presos que, por lutarem pela liberdade, aqui estiveram presos.

Com efeito, nesse texto lá encontramos as regras absurdas e desumanas das visitas de familiares dos presos ao parlatório,  a referência às longas distâncias que eram obrigadas a percorrer, as dezenas de estridentes apitos que em cada dia comandavam a vida prisional, a crueldade e atitudes provocatórias dos carcereiros, o estúpido e cruel «regime de observação», o isolamento, toda a série de castigos, o segredo, a proibição de conversar, a censura às cartas, o não poder ver ao menos o mar.

Como a maior parte dos que aqui estão certamente sabem, o livro inclui também um interessante capítulo sobre seis fugas ( duas não concretizadas) de Peniche, parte que bem pode ser lida como se de um livro de aventuras se tratasse, sendo apenas de lembrar que nelas os perigos eram terrivelmente reais e que esses relatos se revelam espírito de aventura põem sobretudo em destaque a persistência, a imaginação, uma vontade férrea de tornar possível o que parecia impossível e, mais do que tudo, uma determinação admirável em conquistar a liberdade para prosseguir a luta pela liberdade de todo o nosso povo.

Neste livro há igualmente um capítulo e um texto que não se encontra em mais parte nenhuma. Como se lembrarão, no dia 26 de Abril de 1974 e na madrugada de 27 as atenções estiveram sobretudo concentradas em Caxias (os órgãos de informação estavam em Lisboa) e por isso é daí que há mais fotos e imagens tendo Peniche e a libertação dos seus presos ficado um pouco na penumbra mediática. Mas este nosso livro preenche essa lacuna com uma cronologia minuciosa do processo de libertação dos presos de Peniche da autoria do Comandante Machado dos Santos que, com o Major Moreira de Azevedo, constituiu a delegação da JSN encarregada dessa libertação. E se é certo que devemos estar gratos aos membros da Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos que em Lisboa travaram a batalha contra Spínola para que fossem libertados todos mas todos os presos políticos, também temos  uma dívida de gratidão com o Cdte. Machado dos Santos e o Major Moreira de Azevedo que, aqui em Peniche, do primeiro ao último minuto,sempre actuaram no sentido de alcançar esse justíssimo objectivo.

E, por fim, o nosso livro inclui a lista, agora actualizada e acrescentada com a naturalidade dos presos, dos 2510 antifascistas que cumpriram penas em Peniche entre 1934 e 1974, lista essa que deu origem ao digno e comovente memorial que podemos ver lá fora. E o melhor, mais luminoso e mais profundo que se pode dizer sobre essa lista já foi dito pelo nosso querido António Borges Coelho : « Nomeai uma um todos os nomes. Lutaram e resistiram. A liberdade guarda a sua memória nas muralhas desta Fortaleza».

E, por nós, só acrescentaremos modestamente que, mais do que uma lista de nomes, nunca nos esqueçamos que se trata mais de uma lista de 2510 vidas, vidas sofridas e vidas aprisionadas mas sobretudo vidas que são exemplo de coragem e firmeza, vidas que se sacrificaram para que, entre tantas outras conquistas passadas, hoje possamos estar aqui não a celebrar saudades que não temos desse passado de sufoco, terror e negrume que foi o fascismo mas a levantar sempre e sempre a bandeira dos grandes valores e ideais progressistas que são essenciais à construção do nosso futuro colectivo.

E anima-nos a confiança e quase certeza de que este livro não só já fez um útil e bom caminho como o continuará a fazer no futuro como passagem de testemunho às novas gerações e também como elemento complementar de apoio aos numerosos visitantes  portugueses e de outras nacionalidades que, como já hoje acontece, acorrerem ao nosso Museu Nacional da Resistencia e da Liberdade.

Muito obrigado.








10 de setembro de 2019

As"eleições" de 1969 no caminho para a vitória


(Vítor Dias em «O Militante»
de Set- Out. de 2019)



Completam-se no próximo mês de Outubro 50 anos sobre a penúltima farsa eleitoral organizada pela ditadura fascista e que constituiu um relevante acontecimento no processo da prolongada  luta democrática pela liberdade e contra a opressão, não apenas pela dinamismo, audácia, energia criadora e grande combatividade demonstrada pelos comunistas e outros democratas nesse preciso período mas sobretudo porque teve decisivas  projecções para os quase cinco anos que se seguiram até à histórica madrugada de 25 de Abril de 1974.


O período  que vai de Setembro de 1968 a Outubro de 1969 caracterizou-se por uma intensíssima actividade política, por muitas dezenas de importantes episódios, por vivas polémicas e debates dentro do próprio campo democrático, tudo matéria que, apesar do seu inegável interesse, não é possível referir detalhadamente num texto desta natureza. Compreenda-se pois que, de forma sempre discutível, prefiramos dar aqui relevo a algumas questões que, a nosso ver, iluminam melhor o essencial do que esteve em causa e se passou naquela época já tão distante. Assim:

1.Realizando-se cerca de um ano após a tomada de posse de Marcelo Caetano, na sequência da incapacitação de Salazar, e do consequente arranque daquilo a que o PCP chamaria acertadamente de «demagogia liberalizante» e outros chamaram erroneamente de «primavera marcelista», a farsa eleitoral para as legislativas desse ano encerrava em si mesma para as forças democráticas um desafio crucial.

Desafio que, em termos gerais, consistia em ou escolher o caminho de um combate firme e determinado de oposição frontal ao regime (às suas estruturas fundamentais, à sua natureza de classe e à devastadora guerra colonial que prosseguia há oito anos) e de conquistar novos espaços de intervenção ou fazer uma campanha eleitoral naturalmente recheada de críticas ao regime (com muita moderação no que toca ao tema da guerra colonial) mas em termos que não contrariassem  benévolas expectativas face às alterações cosméticas desencadeadas pelo novo Presidente do Conselho e não comprometessem os seus anseios de obter uma legalização preferencial sustentada na marginalização e isolamento político da força mais consequente da resistência antifascista, o PCP. Como aliás se inferia claramente do manifesto “À Nação” subscrito por membros da ASP (Acção Socialista Portuguesa) no princípio de 1969.
Por outras palavras, na orientação, comportamentos e atitudes das diversas componentes da oposição democrática, mais do que as divergências concretas que publicamente afirmavam (embora várias delas tivessem grande significado e importância), o que pesava era sobretudo a análise de fundo que faziam do momento político nacional inaugurado com o “marcelismo” .

2. Na verdade, enquanto Mário Soares e os outros membros da ASP alimentavam sérias ilusões sobre os reais objectivos do «marcelismo» (a ponto de se realizarem contactos entre M. Soares e Melo e Castro, o novo presidente da União Nacional (em Fevereiro de 1970 rebaptizada de ANP – Acção Nacional Popular) e enquanto opinadores esquerdistas nele viam e continuaram muito tempo a ver « um ensaio de transição controlada para as democracias parlamentares», já o PCP, em comunicado de Setembro de 1968 (depois desenvolvido em numerosas tomadas de posição), sublinhava que « o que desde já o distingue [ao governo de Marcelo Caetano] é continuar o salazarismo  a coberto de uma demagogia liberalizante».  O PCP alertava também que «o fim do fascismo não pode resultar da acção daqueles mesmos que o querem salvar e que só o povo português, só a unidade e organização dos democratas, só a luta das massas populares podem conduzir finalmente ao derrubamento da ditadura e à instauração de um regime democrático».

Entretanto, a nosso ver, o maior rasgo da posição assumida pelo PCP não esteve tanto nestas caracterizações mas sim no facto de, ao mesmo tempo, ter tido a sensibilidade e a sabedoria políticas de salientar que «para uma justa apreciação da situação não se deve perder de vista a natureza de classe do novo governo nem se deve perder de vista as dificuldades actuais do regime que abrem novas perspectivas ao movimento democrático nacional». E ter destacado vigorosa e lucidamente «a necessidade de aproveitar audaciosamente a nova situação para quebrar o imobilismo político, exigir o cumprimento de quaisquer promessas demagógicas do governo, imprimir um novo curso à vida política e a luta popular de massas» em torno de objectivos próprios que o comunicado naturalmente enunciava.

E, de facto, representando um estimulo decisivo para a própria acção explicitamente política, a primeira e mais forte resposta à operação demagógica do novo governo veio de poderosas lutas sociais nas fábricas e em outras empresas, com a classe operária e outros trabalhadores a lutarem corajosamente pelas suas reivindicações concretas de carácter económico e social e bem assim, mas com especial ressonância nacional, da chamada «crise académica» de Coimbra, em Abril-Maio desse ano e que constituiu uma extraordinária afirmação de combatividade estudantil.
3. Apesar de o espectro da divisão entre sectores democráticos pairar praticamente desde o inicio de 1969, graças ao apego dos comunistas e de outros democratas de esquerda aos valores da unidade, ainda foi possível aprovar, em 26 de Junho numa reunião em S. Pedro de Muel em que participaram cerca de 100 delegados vindos de todo o país,  uma Plataforma programática que, ainda com uma formulação  moderada sobre a questão colonial (aí ainda se falava em «guerras do Ultramar»), correspondia em linhas gerais a objectivos justos do movimento democrático.

No entanto, pouco tempo depois, a divisão consumou-se sem apelo nem agravo quando Mário Soares e os membros da ASP declararam unilateralmente encerradas as negociações com as CDE de Lisboa, Porto e Braga (no Porto chamava-se CDP – Comissão Democrática do Porto) e anunciaram o propósito de apresentarem candidaturas próprias, sob a sigla CEUD, naqueles distritos. Sem prejuízo do que se salienta no ponto 1. deste artigo, de forma pública as divergências centravam-se em que os democratas da ASP reclamavam a paridade na lista de candidatos (ou seja metade para eles e outra metade para as restantes correntes (que eram várias dado que, por exemplo na CDE de Lisboa e em alguns outros distritos participavam também, ao lado dos comunistas o grupo de companheiros e amigos de Jorge Sampaio, católicos progressistas e personalidades com os Prof. Pereira de Moura e Lindley Cintra não classificáveis em nenhum grupo. E centravam-se também, e sobretudo, na firme oposição de Mario Soares e dos seus companheiros ao tipo de funcionamento democrático adoptado pelas CDE´s, com comissões de base geográficas e sócio-profissionais reunidas em comissões distritais a quem era atribuído um importante papel na aprovação das listas de candidatos.

Dito por palavras mais directas, o que os democratas já reunidos na CEUD pretendiam era manter a intervenção eleitoral oposicionista nos mesmos moldes que, em determinadas conjunturas históricas anteriores (em 1965, nos 12 candidatos por Lisboa, 10 eram do grupo de Mário Soares !) tinham conseguido  impor, ou seja,  um grupo de personalidades reunia-se, mormente no escritório de algum advogado, escreviam um manifesto e elaboravam e decidiam sobre uma lista de candidatos, cabendo a todos os outros democratas serem «carregadores de pianos» sem nenhuma palavra a dizer sobre os candidatos e a orientação da campanha.

4. A respeito do tipo de estruturação das CDE, ao longo dos anos, quer personalidades do «grupo» de Jorge Sampaio quer outras que vieram mais tarde a fundar o PRP  chamaram a si o mérito político da sua organização democrática interna  (comissões de base, comissões distritais e seus poderes, etc.) mas tal reivindicação não tem o mais pequeno fundamento.

Com efeito, segundo o testemunho absolutamente credível do médico comunista Souto Teixeira (em entrevista à “Seara Nova” que não veio a ser publicada), ainda no Inverno de 1968 e em Lisboa, o PCP criou um grupo de trabalho encarregado de preparar as “eleições” de 1969 e que foi acompanhado pelo então funcionário clandestino Pedro Ramos de Almeida (devendo algo similar ter acontecido pelo menos no Porto e Setúbal). Esse grupo de trabalho era constituído por José Tengarrinha, José Gouveia,, Souto Teixeira e José Lopes de Almeida e a divisão de tarefas a que procedeu, para além do estabelecimento de contactos políticos, incluía precisamente a criação e dinamização de comissões de freguesia e concelhias em diversas localidades do distrito, trabalho que foi realizado com pleno êxito.  

Terminando estas referências às divergências sobre a forma de organização da intervenção democrática na farsa eleitoral, diga-se entretanto que não sendo acidentais ou de pouco significado estas divergências dos que se vieram agrupar nas três CEUD, a verdade é que, nos restantes distritos em que as CDE concorreram , diversos membros ou apoiantes da ASP foram candidatos e  conviveram sem qualquer ruptura com a estruturação democrática, com os  critérios de formação de listas e com as críticas frontais à guerra colonial que não suportaram compartilhar em Lisboa, Porto e Braga !.

5.                         Se é verdade que bastava a existência de uma polícia política e de presos políticos (que não terminariam no fim da campanha eleitoral) para, só por si, se poder concluir que não podia haver eleições livres em ditadura, também é verdade que uma vasta panóplia de outros instrumentos limitativos favorecia a burla eleitoral.

Nesse sentido,  basta referir brevemente que, excepção feita a pequenos retoques na lei eleitoral, o novo governo do ex-comissário Nacional da Mocidade Portuguesa, ex-ministro da Presidência e destacado doutrinador do corporativismo manteve todas orientações e comportamentos antidemocráticos do passado. A PIDE mudou para DGS mas nem por isso deixou de prender, provocar, reprimir e intimidar (entre tantos outros exemplo, lembre-se a dissolução da reunião no Palácio do Marquês de Fronteira em Junho e o assalto por trinta rufias à sede da CDE de Lisboa no Campo Pequeno). A Censura mudou para Exame Prévio mas nem por isso deixou de impedir a livre circulação de ideias e o acesso da oposição à rádio e
à televisão.  E a União Nacional continuou a ser o partido único com as correspondentes vantagens e benefícios face a uma oposição que só intermitentemente se podia organizar a actuar à luz do dia.

Na verdade, quem tenha chegado à vida activa já depois do 25 de Abril dificilmente poderá imaginar na sua plenitude e emaranhado as dificuldades que o regime colocava à oposição.  A título meramente indicativo, talvez baste lembrar que o ministério do Interior conservava o direito de recusar candidatos da oposição (como aconteceu com Humberto Soeiro e Victor de Sá em Braga, Alberto Costa em Leiria, Blasco Hugo Fernandes em Santarém e Firmino Martins em Lisboa).A rádio e a televisão estavam vedadas à oposição e o noticiário na imprensa da campanha continuava a ir à censura. O recenseamento era muito limitado (havia apenas 1.784.000 recenseados) e a inscrição nele podia ser administrativamente recusada. A fiscalização democrática da contagem de votos não estava plenamente assegurada em todas as assembleias, dando origem a vastas «chapeladas» em favor da UN. Ao contrário do que acontece em democracia, nas secções de voto não havia boletins para entregar aos cidadãos nem portanto cabines de voto, sendo os boletins da UN distribuídos pela polícia e tendo a oposição de os passar de mão em mão. Além disso, os boletins da oposição era algo translúcidos o que, a olho nu, os diferenciava dos da UN. E, por fim, acrescente-se ainda que evidentemente não havia representação proporcional pelo que, ficando fraudulentamente a UN «à frente», conquistaria sempre todos os lugares na Assembleia Nacional.

6. A  campanha das CDE em todos os  distritos do país, por motivos vários apenas com a excepção de Bragança, Portalegre e Ponta Delgada, traduziu-se numa notável acção de esclarecimento em torno dos grandes problemas nacionais e uma massiva jornada de luta contra o fascismo que foi assegurada pela dedicação e coragem de muitos milhares de democratas, com significativa participação de mulheres e jovens.

Nem as proibições de reuniões e conferências de imprensa, nem as agressões e prisões de democratas que distribuíam propaganda nem a presença provocatória das autoridades e da polícia nas sessões, nem as intimidações e ameaças de represálias a quem alugasse salas à oposição ou imprimisse os seus documentos conseguiram evitar uma denúncia frontal dos verdadeiros problemas do país e das responsabilidades do fascismo no seu agravamento. Em comícios, sessões, manifestos e comunicados, a par da reclamação da liberdade de imprensa, de reunião, de formação de partidos e de sindicatos não tutelados pelo governo e de exigência de libertação dos presos políticos ganharam um novo e central central relevo as reivindicações mais sentidas pelas massas populares em torno do aumento dos salários e do direito à greve, do custo de vida e, facto saliente, do fim da guerra colonial com a explicita menção à necessidade de negociações com os movimentos de libertação de Angola, Moçambique e Guiné-Bissau com vista à independência dos seus povos.

7.                         Apesar do dramatizado apelo ao voto  na UN feito por Marcelo Caetano nas vésperas das “eleições” através da Emissora Nacional e da RTP, os números oficiais vieram a revelar um abstenção a nível nacional de 35% (mas que atingiu cerca de 50% em Lisboa e Setúbal), Uma vez que a oposição decidiu ir às urnas, o que tem de ser considerado  e avaliado no quadro do ambiente político daquela época, as autoridades “generosamente” atribuíram às CDE 10,29% e às três CEUD 1,51%.

Pelo seu significado, refira-se que nem a forma como a campanha decorreu nem os seus resultados geraram qualquer, ainda que ténue, rectificação da orientação da ASP/CEUD (isso só se verificaria para as “eleições de 1973). Na verdade, em comentário aos resultados oficiais, a CEUD vangloriava-se de ter «firmado uma posição (…) porque, repudiando o aventureirismo político representa a viabilidade de uma solução pacífica do problema português» e porque «ultrapassando as fórmulas vagas de uma oposição sistemática, rasga perspectivas válidas de um alternativa».

8.  Os resultados oficiais não representaram de facto nenhum vitória do fascismo e da demagogia marcelista pois toda a campanha democrática conseguiu aumentar o isolamento do regime, desmascarar as suas operações de cosmética,favorecer uma maior consciencialização da necessidade do seu derrubamento e criar as bases, em determinação, em novos quadros e em uma agora determinante influência da orientação do PCP no quadro da oposição legal ou semi-legal, para as lutas seguintes que abriram caminho à conquista da liberdade, da democracia, da paz e do progresso social.

8 de agosto de 2019

Cuidar da memória, fortalecer a esperança

Artigo publicado na revista Manifesto nº 2 de Outubro de 2018

Vítor Dias
1. Se há empreendimento difícil e de incerto resultado, então seria este de tentar formular em que termos, em que condições e com que políticas se poderá prolongar para depois das eleições legislativas de Outubro de 2019 um esquema de cooperação entre forças arrumadas à esquerda no Parlamento que represente uma desejável actualização em termos progressistas da solução politica arduamente conquistada após os resultados eleitorais de 4 de Outubro de 2015.
Desde logo porque no ano que falta ainda podem acontecer muitas coisas e muitos sinais que estão sendo dados na colocação e relacionamento dos vários partidos podem atenuar-se ou tornar-se mais nítidos e, em ambos os casos, influirem nas perspectivas com que é legítimo olhar para o pós-Outubro de 2019.
Mas sobretudo porque creio honestamente ser pouco sensato e pouco razoável esperar que um cidadão, por mais politicamente informado que seja e mesmo que seja partidariamente comprometido, possa por si só atrever-se a formular a «possível» plataforma programática capaz de receber o acordo do PS, do PCP, do BE e do PEV.
Na verdade, por muito que a afirmação possa chocar algumas boas e bem intencionadas almas, as únicas entidades que o poderão fazer são naturalmente as direcções partidárias e, a meu ver, apenas depois de contados os votos e definida a correlação de forças que se expressar na composição do Parlamento.
2. A este respeito, importa não ter nenhuma dúvida de que, provavelmente até com uma significativa aceitação da opinião pública, no ano que falta e de forma poderosa na campanha eleitoral de 2019, os órgãos de comunicação social vão insistir até à exaustão e à monotonia junto das forças políticas para que antecipadamente clarifiquem quais são os termos em que consideram poder vir a entender-se.
Acontece porém que é preciso melhorar a justa compreensão de que, sem prejuizo de uma atitude construtiva e empenhada em soluções pós-eleitorais de entendimento multipartidário à esquerda, as campanhas eleitorais não são nem podem ser em rigor um território para negociações feitas entre partidos e tendo como veiculos os títulos de imprensa ou as afirmações em comícios.
Antes são e só podem ser o território priviligiado para a afirmação e conquista de apoio popular para as suas próprias posições ou propostas, incluindo naturalmente o que isso signifique de diferenciação activa e firme em relação a outras propostas.
Com estas limitações e nestas circunstâncias, assim possa o leitor compreender que quem é convocado para opinar sobre o pós-Outubro de 2019, em vez de se afogar em conjecturas e palpites sobre a dimensão e o conteúdo de cedências recíprocas entre as partes, se concentre antes em clarificar quais são, a seu ver, as opções programáticas que melhor correspondem às necessidades e desafios que o país enfrenta.

3. Antes disso, importa clarificar que as opções programáticas que a seguir se formulem são inseparáveis de um juizo e de um balanço críticos do ocorrido nos últimos três anos assentes em três observações fundamentais:
- a primeira é que a solução política vigente na nova fase da vida nacional teve enormes vantagens por comparação com permanência de um governo PSD-CDS e da desastrosa e cruel política que empobreceu Portugal e os portugueses durante quatro anos e deixou profundas feridas no tecido social e económico;
- a segunda é que essa solução política garantiu, e só ela podia garantir, numerosas medidas de reparação dos agressivos golpes e da insensibidade social do PAF que, ainda que insuficientes e por vezes limitadas, constituem um património a valorizar e a não esquecer;
- a terceira é que, por força de conhecidas orientações e vinculações do PS, a referida solução política não afrontou, como seria necessário, problemas de carácter estrutural como sejam designadamente as imposições e constrangimentos (só tem direito a usar esta palavra os que a eles se opuseram e não os que os apoiaram) derivados da actual fase da integração europeia, do inaudito peso da dívida e dos seus encargos e da legislação e relações de trabalho.

4. No que toca à anterior segunda observação, porque a memória é curta e a pressão para o superficial e efémero é enorme, é preciso relembrar que foi no quadro da actual solução política e por influência decisiva dos parceiros de acordo com o PS, designadamente com um destacado papel do PCP, que se verificaram medidas positivas como:
- no plano da Segurança Social, o aumento geral e extraordinário de reformas em 2017 e 2018, a valorização do abono de família, a protecção social das pessoas com deficiência, a eliminação dos cortes no subsídio de desemprego;
- no plano da educação, a gratuitidade dos manuais escolares para o 1.º e 2.º ciclos na perspectiva da sua universalização;
-no plano laboral, a reposição dos 4 feriados roubados, do subsídio de Natal para trabalhadores da Administração Pública, reformados e pensionistas, do horário das 35 horas de trabalho na Administração Pública e dos complementos de reforma de trabalhadores de empresas do Sector Empresarial do Estado, o descongelamento da progressão nas carreiras na Administração Pública, pese embora a resistência do PS na correspondente valorização salarial, o aumento do Salário Mínimo Nacional, ainda que insuficiente;
-no plano fiscal, o desagravamento sobre os rendimentos do trabalho com a eliminação da sobretaxa e a criação de dois novos escalões e o alargamento do limite do mínimo de existência no IRS, a tributação do grande capital com o aumento do valor da derrama estadual para empresas com mais de 35 milhões de euros de lucro, a introdução de um adicional ao imposto sobre o património imobiliário de elevado valor;
- no plano do apoio às actividades económicas, das MPME com a redução do IVA na restauração para 13% e a redução do valor mínimo do PEC, com vista à sua eliminação, e da pequena e média agricultura e pesca com o apoio nos combustíveis;
- e ainda a reversão dos processos de privatização do Metro, da Carris e da STCP que, a exemplo de outras medidas projectadas pelo Governo PSD/CDS, foi possível impedir.
5. A simples leitura desta lista não exaustiva basta para demonstrar que aqueles que proclamam que o PS meteu o PCP e o BE no bolso, os anestesiou ou condenou à irrelevância ou são movidos por pura má-fé ou estão afogados num espírito de classe e num estatuto social que os impede de ver quanto estas medidas trouxeram palpáveis vantagens e benefícios para a vida de grande parte da população.
E falando de mistificações interesseiras, talvez seja de acrescentar que estas medidas positivas por outro lado em nada impediram um importante processo de lutas sociais e reivindicativas incidindo sobre insuficiências da acção governamental e injustos interesses patronais, em termos de um vigor e diversidade que atestam que o movimento sindical unitário assegurou com èxito a tarefa maior de defender e conservar a sua autonomia.de orientação e intervenção.
6. A nosso ver, uma atenta e lúcida consideração dos problemas e necessidades do país e uma firme e estruturada vontade de lhes dar solução exigem imperativamente uma política de;
firme combate às imposições gravosas para o país da União Europeia, da política do Euro e do garrote do Tratado Orçamental e de recuparação de instrumentos de soberania nacional;
- defesa da reestruturação da dívida e diminuição dos seus encargos, sem a qual ficará duradouramente comprometido o nível de investimento público de que Portugal carece; ( assinale-se a este respeito que até uma personalidade com Manuela Ferreira Leite declarava em Junho deste ano que seria inconcebível e insuportável que o país estivesse durante 30 anos a ter saldos primários ostensivamente elevados que seriam consumidos para reduzir a dívida para os 60% do PIB).
- revogação das normas mais gravosas do Código Laboral introduzidas pelo anteriores governos do PS e do PSD-CDScomo escopo central do programa da troika, nomeadamente no que toca a eliminação da caducidade da contratação colectiva, bancos de horas, valores de indemnização por despedimento, reposição do tratamento mais favorável ao trabalhador e do período experimental de 90 dias, etc.;
redução significativa dos trágicos níveis de precariedade laboral na sociedade portuguesa que constituem não apenas um enorme flagelo social mas também um grave mutilação da democracia na medida em que esta situação acarreta extraordinárias limitações reais ao exercício de direitos sindicais, com destaque para o direito à greve;
- valorização do trabalho e dos trabalhadores, designadamente com o aumento geral dos salários e do Salário Mínimo Nacional em termos superiores aos que têm sido feitos e bem assim do avanço para as 35 horas no sector privado;
- aumento do investimento público e do financiamento dos serviços públicos e funções sociais do Estado, incluindo uma efectiva, ainda que faseada, contagem do tempo de serviço dos trabalhadores da função pública referente ao tempo em que as progressões na carreira estiveram congeladas;
reforço da capacidade de intervenção do Estado nos sectores estratégicos da economia nacional e reversão das Parcerias Público-Privadas;
- reforço da protecção e apoio sociais, prosseguindo o aumento extraordinário das pensões, garantindo a universalização do abono de família, dando cumprimento ao compromisso da reforma sem penalizações para trabalhadores com 40 ou mais anos de descontos e diversificação das fontes de financiamento da segurança social, designadamente estabelecendo contribuições de empresas em função do valor acrescentado;
- resposta de emergência social aos problemas da habitação, em especial nas Áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto, com a revogação e substituição da «Lei dos Despejos» do Governo PSD-CDS e de Assunção Cristas;
- reforma fiscal tributando o património mobiliário, os lucros e dividendos, desagravando os rendimentos do trabalho, repondo o IVA na electricidade e no gás nos 6% e revendo injustificados benefícios fiscais concedidos aos grandes grupos económicos;
- defesa e refotço do aparelho produtivo com vista ao aumento da produção nacional;
- apoio aos micro, pequenos e médios empresários, designadamente com a eliminação do Pagamento Especial por Conta e a redução dos seus custos com energia e com o desenvolvimento do mercado interno;
- apoio efectivo às artes, à cultura e ao património, nomeadamente conferindo-lhes uma dotação orçamental correspondente a 1% do PIB;
- apoio à agricultura familiar e ao mundo rural, de concretização atempada das medidas para responder às consequências dos incêndios e no quadro de um firme empenho em atenuar as graves assimetrias entre as diversas regiões do país.
- urgente planificação de um processo de renovação e modernização da ferrovia nacional.
Depois deste longo (ou curto ? ) enunciado, talvez valha a pena salientar que são estas ou outras propostas políticas que devem estar no centro de um debate voltado para o pós-Outubro de 2019. Com efeito, não seria uma grande contribuição para esse debate democrático que, em caso de impasses ou fracassos, alguém artificiosamente planasse sobre as políticas e as divergências em torno delas e fugisse a tomar posição sobre elas para depois poder olimpicamente sentenciar sobre as iguais responsabilidades de todos os partidos envolvidos.

7. À distância de um ano das próximas eleições legislativas dois factos devem ser tidos em conta porque apontam respectivamente em determinada direcção sobre o provável desfecho eleitoral e podem ter influência sobre os cenários pós-eleitorais.

O primeiro consiste em, sem certezas, a avaliar pela cotação do PSD em sondagens (os piores resultados em 42 anos !), ser razoável prever que nas próximas eleições não haverá o perigo de o PSD, sózinho ou aliado ao CDS, ter uma maioria relativa ou absoluta nas eleições, previsão que só pode ser agravada em alguma medida pelo surgimento do novo partido de Santana Lopes.

O segundo consiste no facto muito relevante e inapagável de que um elemento central da campanha interna de Rui Rio no PSD foi o propósito de, não vencendo o PSD as eleições, este partido se dispor a apoiar ou viabilizar um governo do PS em nome do «sagrado» objectivo de «libertar» o PS da necessidade de acordos à sua esquerda .

É certo que até pode acontecer que, a partir de determinada altura, Rui Rio coloque antes a tónica no PSD como «partido que disputa a vitória» e que constitui uma «sólida alternativa» ao PS mas isso jamais poderá apagar a revelação que fez na quadro de disputa da liderança do PSD. E, por outro lado, também o PS pode dizer da boca para fora que o seu projecto é de manutenção de alianças à esquerda mas intimamente ver com imenso agrado a margem de manobra que a posição de Rui Rio lhe oferece.
Neste quadro, não se estranhará que sustente que, face a perigos que já são desejados por alguns (governo minoritário do PS sustentado por um «bloco central» parlamentar ou maioria absoluta do PS), a necessária opção de voto é genericamente por aqueles que desejam impedir o PS de voltar a um regaço à direita, designadamente aquela força que reputo dispor de uma maior audácia, consistência e coerência programática, de uma qualificada intervenção institucional e no movimento de lutas, a par de uma insubstituivel radicação social.
8. Se não fosse a crucial importância do que estará em jogo, poder-se-ia talvez escrever com algum deleite intelectual que nos esperam tempos interessantes. Por mim, prefiro dizer que nos esperam tempos muitíssimos exigentes a pedirem muita confiança mas sobretudo enorme determinação, uma linha político-eleitoral dotada de certa sofisticação e muito rigor e que seja portadora de esperança, uma aposta muito grande no crescimento do espírito crítico dos eleitores e um discurso sensível e humanizado centrado nos grandes e verdadeiros problemas dos portugueses e de Portugal.

16 de abril de 2019

A minha comunicação na Conferência Parlamentar sobre



Boa tarde a todos. Queria naturalmente começar agradecendo à Comissão de Cultura na figura da sua  Presidente o convite para participar nesta oportuna e importante iniciativa.

Manda a verdade das coisas que diga que, ao contrário de oradores antecedentes, quem vos fala agora não tem quaisquer pergaminhos académicos nesta ou em qualquer outra matéria, tratando-se apenas de um cidadão que, com vossa benevolência, apenas se pode apresentar como acompanhando há quatro décadas com interesse e com projeções no papel impresso  e num blogue as questões e práticas da comunicação social portuguesa.

Assim sendo, com pedido de desculpas por prováveis repetições em relação ao que hoje já outros disseram melhor, aqui ficam quatro modestos apontamentos:

O primeiro destina-se a afirmar que os dados resultantes de um meritório trabalho do jornalista Paulo Pena no DN (mais de 20 páginas online dedicadas à desinformação com 2 milhões de seguidores) são profundamente inquietantes e não deixam nenhuma margem para dúvidas quanto à sua potencial e provável influência nas eleições nacionais deste ano.

Por outro lado, temo seriamente  que até cidadãos muito informados e dotados de um elevado espírito critico face às operações de desinformação sejam atingidos por um sentimento de impotência ( a Cambridge Analytica obtevem do Facebook dados de 80 milhões de pessoas e julgo que ninguém foi preso ou condenado). E que esse cidadão se sintam um pouco como se estivessem a lutar contra um dragão tendo apenas como única arma um canivete. Mas, por isso mesmo, sempre longe de quaisquer obcessões securitárias e no intransigente respeito pelas liberdades democráticas, creio que tudo o que puder ser feito para contrariar ou atenuar este perverso fenómeno é bem-vindo, é necessário e é urgente.

Creio entretanto que não nos devemos deixar hipnotizar apenas pelo que é novo e, nesse sentido, permito-me observar que nada nos deve distrair dos princípios e regras (isenção das entidades públicas, pluralismo, proibição da publicidade comercial dos partidos e tudo o mais que sabe) que já estão instituídos na legislação sobre campanhas eleitorais. E, nesse domínio, de um ponto de vista pessoal, permito-me formular o voto de que «os critérios editoriais» a que a lei se refere não sirvam de biombo para encobrir práticas discriminatórias ou preconceituosas e também o voto de que, nas próximas eleições legislativas, colhendo a devida e cristalina lição do desfecho das eleições de 4 de Outubro de 2015, os meios de comunicação social tradicionais resistam melhor ao velhíssimo sofisma das «eleições para primeiro-ministro».

 para ilustrar a importância das regras já assentes, permitam-me um pequeno exemplo :  há três semanas, consultando a página que o Parlamento Europeu criou especificamente para eleições europeias de Maio próximo ( e onde há uma agregação de sondagens) encontrei uma secção intituilada «Os desafios da Europa» com um conteúdo perfeitamente alinhado pela ideologia mainstream do P.E. Era como se a AR criasse uma páginas especifica sobre as próximas legislativas e lá pusesse uma secção denominada «Os desafios de Portugal».  Essa secção foi entretanto felizmente retirada mas ficou lá outrs intitulada « O que a Europa faz por mim» com o conteúdo que se pode calcular.

Ao mesmo tempo, sublinho com sinceridade a importância do papel que podem desempenhar as acções e iniciativas de «fact cheking»  tanto em sites especializados como nos próprios órgãos de informação tradicionais.

A par disto, partilho da ideia, certamente não consensual, de que seria vantajoso para o enriquecimento do debate democrático que existissem variados sites de reflexão e crítica sobre os meios de comunicação tradicionais (como, por exemplo o ACRIMED francês) e que nas direcções e chefias desses órgãos se evitassem reacções de perfil corporativo ou pretensões de intocabilidade perante os exercícios de crítica aos media.

Mas se falamos de combate à manipulação, à desinformação e às «fake news», a para da contribuição indispernsável dos órgãos de serviço público,  então entendo salientar que como ponto nodal desse combate tem de estar a justa ideia de que cabe aos profissionais da informação um papel essencial na defesa dos melhores valores da  profissão, o que a meu ver é inseparável de mudanças significativas nas suas ásperas e inseguras condições de trabalho e do pleno respeito pelos seus direitos, tudo acompanhado da rejeição de uma visão puramente mercantilista da informação e da notória pulsão para o sensacionalismo e tudo tendo em vista a reabilitação e reafirmação da noção, hoje em dia muito posta na obscuridade, da «responsabilidade social dos jornalistas e dos órgão de informação».

Um segundo apontamento destina-se a sublinhar um óbvio que, apesar de o ser, por vezes parece bastante  esquecido embora hoje já aqui tenha sido lembrado várias vezes : é que as «fake news» que hoje defrontamos (exceptuando a capacidade de penetração que as novas tecnologias lhe ofereceram) não nasceram com a internet e o facebook.

Num exercício de memória histórica obviamente selectiva que viaja ao de leve por acontecimentos do século passado, lembraria que mentiras ou«fake news» houve:

    em Fevereiro de 1898 quando os EUA responsabilizaram a Espanha pela explosão ( que depois se veio a considerar ter sido interna e  espontânea) do seu cargueiro Maine no Porto de Havana, largamente explorada pela imprensa de Randolph Hearts e criando um fervor patriótico que que levou à guerra hispano-americana;
    em Fevereiro de 1933, quando Hitler e os nazis acusaram G. Dimitrov de estar ligado ao incêncio do Reichstag;

- em Agosto de 1964 quando os EUA acusaram a marinha norte-vietnamita de ter disparado sobre o destroyer Maddox e que a National Secuirity Agence veio a declarar depois que não houve qualquer ataque mas que serviu a
L. Johnson para desencadear a intervenção no Vietname do Sul.

Em Fevereiro de 2003 quando Colin Powell exibiu na ONU as supostas provas da existência no Iraque de armas de destruição maciças;

E num plano distinto e à nossa pequenina escala escala, falando de notícias falsas, alarmistas e irresponsáveis em Portugal, talvez não seja de esquecer quantos milhões de euros custou ao Estado português uma célebre noticia da TVI sobre o BANIF.

É certo que talvez possa haver quem argumente que, no caso destas operações de desinformação que estiveram ligadas a sangrentos conflitos militares e alcançaram uma escala planetária, como há autores e responsáveis bem identificados, isso permite um maior debate escrutínio. Ainda que assim fosse, creio que as suas consequências sobre o curso da história e em termos de danos humanos são muito superiores às operações de desinformação que hoje nascem em alfurjas subterrâneas com rostos falsos.



Um terceiro apontamento visa sublinhar que, como todos sabemos, um dos casos mais falados da influência das fake news veiculadas por redes sociais nos processos eleitorais é última eleição presidencial nos EUA.

Creio não existirem dúvidas de que as campanhas de desinformação movidas pela candidatura de Trump ou por outros em seu favor atingiram muitas dezenas de milhões de norte- americanos.

Mas já sobre os seus reais efeitos sobre os resultados eleitorais parece haver opiniões diferentes.

Ponderando a diversidade dessas opiniões, por mim tendo a pensar que, no caso de essas campanhas se terem especialmente concentrado nos chamados Estados
«oscilantes», então é bem provável que tenham contribuído para a inesperada vitória de Trump nesses três Estados e, por essa via, assegurado a sua maioria no Colégio Eleitoral.

Mas observo ao mesmo tempo que essas campanhas não impediram Hilary Clinton de ter mais 3 milhões de votos do que Trump.

Ora acontece que esta diferença é igual ou mesmo superior às registadas em outras eleições presidenciais nos EUA no decurso do Século XXI, sobretudo quando se trata de uma primeira eleição. Na verdade, em 2000 Gore perde mas obtem mais 300 mil votos que Bush, em 2004 Bush ganha a John Kerry com mais 300 mil votos e em 2008 Obama ganha a Mitt Romney com mais 3 milhões de votos.



Nestes tempos incertos e inquietantes, em jeito de consolação talvez possamos concluir que, ao menos por enquanto, as fake news não são omnipotentes.

E, por fim com diz o nome, um último apontamento para vos dizer que tenho a ideia de que o pós-guerra do século passado foi uma época em que o grau de sindicalização era incomparavelmente maior do que é hoje, em que as correntes, forças ou famílias políticas tinham um grau de coesão e de base social de apoio muito mais nítidas e sólidas, tudo conduzindo, com outros elementos, para laços de solidariedade e sociabilidade social mais fortes.

Digo isto mas sei que isso não impediu que logo em 1946 tivesse surgido na Itália o  «qualunquismo»  (protagonizado pela Frente do Homem Comum) que logo obetve 5,3% dos votos para a Assembleia Constituinte, recebendo 1.200.000 votos. E que, em 1956, na França surgiu o «poujadismo» que obteve 12% dos votos e 2 milhões de votos.

Ainda assim, mas sem prejuizo de um intrincado complexo de outras causas e factores ( em que entram problemas económicos e sociais, as migrações e a erosão das soberanias nacionais), não consigo deixar de pensar que a preocupante e inusitada vaga de  populismos fascizantes que varre a Europa e não só é  inseparável der um processo social e político em que cresceu o individualismo, em que se construiu uma cultura do efémero e em que se esbateram os laços de solidariedade social e de pertença política, o que encaixa também na crise e anestesia da noção de processo histórico e numa avassaladora perda de memória colectiva favorecida pelo sensacionalismo e pela extrema volatilidade de opiniões humores no corpo social.

E, por maiores que sejam as dificuldades, não vejo outro caminho digno se não o dee continuar a lutar contra estes factores que vejo como elementos de de degenerescência da vida democrática.

Obrigado pela atenção e desculpem qualquer coisinha.

15.4.2019